A história da moeda e das reservas de valor é um campo fértil para compreender como ativos emergem e se consolidam nos mercados. O ouro, por sua escassez geológica, alta relação estoque-fluxo e propriedades físico-químicas ideais (durabilidade, divisibilidade, fungibilidade e portabilidade), tornou-se historicamente o principal ativo monetário (Rothbard, 2008). Sua adoção não foi resultado de um decreto central, mas de um processo espontâneo, conforme descrito por Carl Menger (1892) em sua teoria sobre a origem do dinheiro. O ouro ocupou esse papel por atender melhor do que qualquer outro ativo às necessidades de uma economia de mercado em expansão.
Quando se analisa o chamado "fenômeno da bolha das tulipas", a perspectiva técnica exige cautela. Estudos mais recentes, como o trabalho de Anne Goldgar (2007), demonstram que a narrativa popular é fortemente exagerada. A ideia de uma bolha massiva e irracional, onde casas inteiras eram trocadas por bulbos de tulipas, carece de evidências documentais sólidas. A especulação ocorreu, mas foi restrita a um pequeno nicho mercantil e não refletiu uma disfunção econômica generalizada. O caso, portanto, serve mais como um alerta pedagógico sobre manias especulativas em ativos ilíquidos, do que como um paralelo robusto para entender a natureza de ativos monetários sólidos.
Do ponto de vista técnico e austríaco, a análise comparativa entre ouro e Bitcoin é muito mais pertinente. Bitcoin, assim como o ouro, possui uma oferta limitada (Nakamoto, 2008), é resistente à censura, divisível, verificável e portável a custos extremamente baixos em escala global (Antonopoulos, 2017). Além disso, sua escassez não está sujeita à descoberta geológica, mas sim a um protocolo criptográfico auditável em tempo real por qualquer participante da rede. Essas propriedades monetárias posicionam o Bitcoin dentro do conceito austríaco de "good money", um dinheiro que surge espontaneamente por atender demandas reais de mercado (Mises, 1949).
A separação entre dinheiro e Estado é outro fator técnico central na análise. O ouro cumpriu essa função em boa parte da história monetária, servindo como âncora para regimes de padrão-ouro (Rothbard, 1995). No entanto, sua fisicalidade acabou permitindo que governos capturassem e monopolizassem seu armazenamento e emissão, culminando em sistemas fiduciários centralizados. Bitcoin, ao operar de forma puramente digital e distribuída, elimina essa vulnerabilidade física. Conforme destacam Ammous (2018) e Szabo (2005), isso representa uma inovação monetária histórica: a criação do primeiro ativo digital escasso e soberano.
Do ponto de vista da teoria austríaca de ciclos econômicos, a volatilidade inicial do Bitcoin é uma consequência natural em seu processo de descoberta de preço (Rothbard, 1970). Como qualquer bem emergente, seu valor de mercado reflete uma interação dinâmica entre utilidade percebida, adoção e liquidez. Compará-lo às tulipas é tecnicamente inadequado, como mostra Salerno (2010). Enquanto as tulipas careciam de atributos monetários fundamentais — divisibilidade, portabilidade, função de meio de troca — o Bitcoin já cumpre muitas dessas funções em mercados específicos, especialmente em regiões de instabilidade cambial ou sob regimes autoritários (Frieden, 2020).
O Bitcoin tem desempenhado um papel concreto em mercados marcados por instabilidade cambial e regimes autoritários, onde a degradação acelerada das moedas fiduciárias e o controle severo de capitais comprometem a liberdade econômica. Em países como Venezuela e Líbano, a hiperinflação, a escassez de dólares e os limites impostos ao acesso bancário criam uma demanda espontânea por ativos resistentes à censura, digitalmente portáveis e com oferta limitada, características inerentes ao protocolo Bitcoin (Nakamoto, 2008; Antonopoulos, 2017). Em regimes autoritários como Nigéria e Irã, o Bitcoin é utilizado tanto para preservação patrimonial quanto para remessas internacionais e financiamento de pequenos negócios à margem do sistema bancário oficial. Esse fenômeno valida, na prática, a teoria austríaca sobre a emergência espontânea de dinheiros sólidos em ambientes de mercado disfuncional (Menger, 1892), demonstrando que o valor do Bitcoin, em vez de derivar apenas de especulação, reflete uma utilidade econômica concreta como reserva de valor apátrida e mecanismo de transação resistente à censura estatal (Frieden, 2020).
Portanto, ouro, tulipas e Bitcoin representam três categorias analíticas distintas: o ouro como ativo monetário historicamente consolidado, as tulipas como um exemplo histórico mais midiático do que empiricamente comprovado de mania especulativa, e o Bitcoin como uma inovação monetária digital, com forte aderência aos princípios austríacos de dinheiro sólido. A perspectiva austríaca, baseada em praxeologia e no entendimento da moeda como um fenômeno de mercado emergente, posiciona o Bitcoin não como uma bolha irracional, mas como a resposta lógica à degradação monetária promovida pelos Bancos Centrais e à demanda global por dinheiro sólido e descentralizado (Hayek, 1976).
Referências Bibliográficas
Ammous, S. (2018). The Bitcoin Standard: The Decentralized Alternative to Central Banking. Wiley.
Antonopoulos, A. (2017). The Internet of Money. Volume II. Merkle Bloom.
Goldgar, A. (2007). Tulipmania: Money, Honor, and Knowledge in the Dutch Golden Age. University of Chicago Press.
Hayek, F. A. (1976). Denationalisation of Money: An Analysis of the Theory and Practice. Institute of Economic Affairs.
Menger, C. (1892). On the Origins of Money. Economic Journal.
Mises, L. (1949). Human Action: A Treatise on Economics. Yale University Press.
Nakamoto, S. (2008). Bitcoin: A Peer-to-Peer Electronic Cash System. Available at: https://bitcoin.org/bitcoin.pdf
Rothbard, M. (1995). A History of Money and Banking in the United States. Ludwig von Mises Institute.
Rothbard, M. (1970). Man, Economy, and State. Nash Publishing.
Rothbard, M. (2008). What Has Government Done to Our Money? Ludwig von Mises Institute.
Frieden, J. (2020). Currency Politics: The Political Economy of Exchange Rate Policy. Princeton University Press.
Salerno, J. (2010). Money: Sound and Unsound. Ludwig von Mises Institute.
Szabo, N. (2005). Shelling Out: The Origins of Money. Available at: https://nakamotoinstitute.org/shelling-out/